É parte do caráter cristão a não subordinação aos costumes e tradições que circundam o mundo devido a sua propriedade temporária, o que implica necessariamente em uma manutenção da ortodoxia cristã. Isso se aplica a todas as outras áreas de sua vida até no campo profissional. Esse "mínimo prefácio" serve apenas como uma boa contextualização de um causo - no sentido mais mineiro de todos - histórico.
A nudez na arte existe e a companha quase desde sua fundação, porém apenas como um instrumento simbólico para embelezá-la. A pintura não deixa de ser arte e por raciocínio lógico também apresenta recortes em que a nudez aparece. Entretanto, a maneira como é feita pode muitas vezes ser esdrúxula e imoral, pois ao invés de ser um recurso para a pintura torna-se a pintura em sim.
Em tais modos encontravam-se as pinturas no renascimento e também no período barroco. Rembrandt mesmo não tendo a mais imaculada moral resolveu protestar - da maneira que um pintor protestaria -, e não poderia selecionar melhor uma cena.
Não sei se conhecem a história de Lucrécia, se a resposta for sim pule este parágrafo. "Lucius Tarquinius, por seu excessivo orgulho alcunhado Superbus, após ter causado o cruel assassínio de seu próprio sogro Servius Tullius, e, contrário a lei e costume romanos, sem demandar ou esperar o sufrágio do povo, tomado a si a posse do reino, saiu, acompanhado de seus filhos e outros nobres de Roma, a lançar o cerco a Ardea. Durante esse cerco, os homens mais graduados do exército se encontrando uma noite na tenda de Sextus Tarquinius, o filho do rei, em suas charlas após a ceia cada um enalteceu as virtudes de sua própria esposa: dentre os quais Colatino exaltou a incomparável castidade de sua esposa, Lucrécia. Nesse jocundo humor cavalgaram até Roma; e com o intento, pela aparição secreta e súbita, de pôr à prova aquilo que cada um antes havia afiançado, apenas Colatino encontra a sua esposa, embora fosse tarde da noite, fiando junto a suas criadas; as outras damas foram todas encontradas dançando e festejando, ou em passatempos diversos. Com isso os nobres concederam a Colatino a vitória, e a sua esposa a fama. Nesse momento, Sextus Tarquinius, que se consumia em chamas com a beleza de Lucrécia, mas abafava suas paixões naquele instante, partiu com os restantes de volta ao acampamento; de onde ele em breve se retirou em privado, e foi, de acordo com sua posição, regalmente recebido e alojado por Lucrécia em Collatium. Na mesma noite ele traiçoeiramente se esgueirou até seu quarto, desonrou-a violentamente, e de manhã cedo pôs-se a correr. Lucrécia, nesse dissabor lamentável, se apressa em enviar mensageiros, um a Roma atrás de seu pai, outro ao acampamento atrás de Colatino. Eles chegaram, um acompanhado de Junius Brutus, o outro de Publius Valerius; e encontrando Lucrécia trajada em hábito de luto, questionaram a causa de sua mágoa. Ela, antes obtendo deles um juramento de fazer-lhe vingança, revelou o autor, e toda sorte de pormenor, e logo então, de súbito, esfaqueou-se. Feito isso, em uno consenso todos fizeram o voto de desenraizar toda a família dos Tarquinos; e transportando o corpo a Roma, Brutus familiarizou o povo com executor e detalhes do feito vil, com uma amarga invectiva contra a tirania do rei. Com isso, tanto é movido o povo que em uno consenso e aclamação geral os Tarquinos foram todos exilados, e o governo do Estado alterado de reis para cônsules."1
Feita essa explicação, na época de Rembrandt corriam livremente pinturas de cunho pornográfico e que tinham como único objetivo a sedução, muitas dessas pinturas retratavam Lucrécia em sua cena última - em algumas versões, ela se suicida logo após o seu ato -, pois então inicia o protesto. Tal pintura tem duas versões. A primeira de 1644 apenas com o punhal na mão e com olhar triste, a mesma é a que aparece como miniatura deste artigo, "Sua mão esquerda permanece aberta à mesma altura da direita, como se uma parte dela resistisse a completar o ato autodestrutivo. A tensão desse momento terrível enfatiza o drama humano de uma mulher presa no dilema moral entre a vida e a honra, uma escolha que assumiria conotações simbólicas."2
Já a segunda trás o ato já consumado, Lucrécia apregoa um olhar melancólico, triste e sem honra; vemos sangue e sua mão carrega um punhal, a corda em sua mão direita demonstra que seu destino já foi traçado e agora é apenas "puxada" pela corda.
Entretanto, em todas essas cenas Lucrécia está vestida, o que não era habitual.
Notando a perversão de um personagem tão honrado, que escolheu perder a sua vida ante tudo o que passou, que naquele momento era usada como apenas mero objeto sexual o holandês resolveu restituí-la de toda a sua virtude. Vestiu ela com roupas de sua época e trouxe-a novamente para o posto de mártir, trouxe ela novamente para onde era o seu lugar.
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Melhor do que deveria estar,
Emanuel Basílio
SHAKESPEARE, William. O estupro de Lucrécia. Tradução de Rafael Blanco.
NATIONAL GALLERY OF ART. The Feast of the Gods. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.83.html#entry. Acesso em: 30 jan. 2025.